Congresso Nacional, em Brasília – Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
Sob o discurso de “responsabilidade fiscal” e “alívio orçamentário”, a Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2023, aprovada na Câmara dos Deputados e em análise pelo Senado, representa o que especialistas e entidades de classe vêm chamando de uma manobra silenciosa e drástica contra credores da União, estados e municípios: o adiamento indefinido do pagamento de precatórios. A proposta, que altera profundamente o regime de pagamento dessas dívidas judiciais definitivas, é vista por muitos como uma nova tentativa de institucionalizar o calote, travestida de medida técnica.
A PEC prevê que União, estados e municípios poderão limitar os valores destinados anualmente ao pagamento de precatórios a um percentual da Receita Corrente Líquida (RCL), variando entre 1% e 6%. Isso significa, na prática, que grande parte dos precatórios — especialmente os de natureza alimentar, devidos a aposentados, servidores públicos, pensionistas e cidadãos em situação de vulnerabilidade — serão adiados por tempo indeterminado, com possibilidade de parcelamento e correção abaixo da inflação. O texto permite ainda que os municípios parcelem dívidas previdenciárias em até 25 anos, e os estados, em até 30 anos, trocando a tradicional taxa Selic por IPCA + até 4%, o que reduz substancialmente os valores corrigidos a receber.
A proposta também aumenta de 30% para 50% a margem de desvinculação de receitas municipais até 2026, flexibilizando o orçamento municipal, mas, segundo especialistas, enfraquecendo as garantias de investimentos em áreas prioritárias como saúde e educação. A manobra contábil é evidente: com essa folga artificial no caixa público, prefeitos e governadores ganham liberdade para gastar, mas empurram a conta para futuras gestões e, pior, descumprem decisões judiciais transitadas em julgado.
Entidades como a Fenafisco, a Pública Central do Servidor e o DIAP vêm denunciando o caráter regressivo da proposta. “É um golpe disfarçado contra servidores públicos, aposentados e pensionistas, que passam a depender da sorte ou da boa vontade política para receber o que a Justiça já determinou que é seu por direito”, declarou a Fenafisco em audiência pública na Câmara.
Além disso, há um grave efeito colateral: a insegurança jurídica institucional. A PEC envia um recado preocupante ao mercado e à sociedade: o Estado brasileiro pode não cumprir sentenças judiciais se isso apertar seu orçamento. Para investidores e credores em geral, a mudança de regra mina a confiança e a previsibilidade jurídica. “Estamos criando uma bomba-relógio fiscal para 2027. Adiar o pagamento dessas dívidas não as elimina. Só transfere o problema para um momento em que os recursos serão ainda mais escassos”, alertou o economista Gabriel Leal.
Segundo dados apresentados por juristas e parlamentares críticos à PEC, mais de 90% dos precatórios atingidos são de natureza alimentar — justamente os de maior sensibilidade social. Com a postergação forçada, muitos credores podem morrer sem receber, transferindo a dívida aos espólios de seus herdeiros, que enfrentarão anos adicionais de espera.
O impacto federativo também é relevante: ao uniformizar regras fiscais e previdenciárias, a PEC ignora a realidade fiscal distinta de cada ente da federação, ferindo a autonomia de estados e municípios. Na prática, trata de forma igual quem é desigual, e reforça uma centralização das decisões orçamentárias que vai contra os princípios da Constituição de 1988.
Enquanto isso, o governo e a base aliada celebram a proposta como “alívio fiscal”, abrindo espaço para emendas parlamentares e promessas eleitorais com o dinheiro que deveria ser reservado ao cumprimento de obrigações judiciais. O precedente preocupa: se a PEC 66/2023 passar no Senado e for promulgada, o Brasil legalizará o calote, comprometendo sua credibilidade jurídica, econômica e moral.
Redação ClickJus, portal jurídico do VozPB.